Ana Carolina Acom * Falar sobre roupas e suas possibilidades de expressão se confunde com a própria história de “As Carolinas”, a formação do modamanifesto.com e a motivação pessoal para estudar a moda seriamente de cada uma de nós.
Quando me formei em filosofia e comecei a escrever e pesquisar sobre moda, me vi inserida neste meio de roupas e aparências desde a infância. Meu trabalho de conclusão foi então: “Semiótica das Vestimentas”, onde estudei a teoria semiótica de Peirce e a possibilidade de aplicação às vestes, pelo viés da filosofia da arte. As roupas podem ser consideradas signos, pois segundo Peirce o signo deve representar algum objeto. Neste caso, o objeto que a roupa deve representar é o EU subjetivo de quem a veste, algo de sua identidade ou mesmo sua localização no tempo e espaço. Um bom exemplo seriam os uniformes, bastante representativos da função e atividade de um indivíduo. Ao entrar em contato com os trabalhos de Carol Puccini e suas pesquisas sobre figurino, percebi que a relação semiótica de interpretar as vestes eram ainda mais claras e apaixonantes. A construção de um figurino deve fazer o caminho inverso: ao invés de lermos na indumentária a personalidade de um indivíduo, partimos de todas as características deste indivíduo expressas na literatura ou em roteiro para criar e interpretar o que simbolizará sua identidade e caracteres mais marcantes. A vestimenta de um personagem deve transmitir e representar a sua essência já estabelecida por um autor. O cineasta Alfred Hitchcock era envolvido em todos os aspectos de sua produção, incluindo a direção de arte; o cuidado com o cenário, ambientação e preocupação com os figurinos, muitos destes, ele os escolhia pessoalmente. Por isso é claramente possível perceber seu estilo e assinatura na tela. Da roupa dos personagens aos objetos de uma residência, tudo inspira à aura de “assassinatos” e sempre diz algo mais do que parece à primeira vista. Poderia dizer, correndo o risco de ser mal interpretada, que sua filmografia é uma permanente variação em torno de um único tema: a aparência. Pois a imagem, enquanto linguagem por excelência cinematográfica, foi explorada cuidadosamente em seus filmes para contar suas fascinantes histórias de crimes, medo e culpa. Mesmo em um de seus mais metafísicos filmes, como “Festim Diabólico”, em que o diálogo é primordial, a atmosfera da festa e o fato de sabermos que ali há um cadáver presente como mesa de jantar, nos afeta bastante. Em minha opinião, a cena do assassinato é esteticamente essencial e se contrapõe ao fato de o filme ser muito mais sobre a alma humana do que sobre um assassinato. A complexidade na composição do figurino hitchcockiano está justamente em situar personagens, muitas vezes, com conflitos de identidade. Pois, se a roupa caracteriza determinado indivíduo, como fazer isso durante a perda ou confusão de identidade, tema recorrente em sua obra? Esses conflitos foram muito bem trabalhados em: “Spellbound- Quando Fala o Coração (1945)”, o personagem assume a personalidade do médico assassinado durante crise de amnésia; “Homem Errado (1956)” e “Intriga Internacional (1959)”, onde há a confusão de identidade com o culpado; “Um corpo que cai (1958)”, a personagem representando outra identidade; e “Rebecca – a Mulher Inesquecível (1940)”, em que a personagem é atormentada pela comparação com outra mulher tão diferente de seu universo. Hitchcock sempre fez questão de manter em seus filmes o glamour do cinema que tanto encantava o público de sua época. As pessoas sonhavam com o cinema e seu esplendor, desejavam ver pessoas bonitas na tela e momentos perfeitos. Em seus filmes, a aparência e o estilo são sempre impecáveis, as roupas e o papel são perfeitas para os atores, assim como o ambiente. Muitos deles associam os personagens diretamente à moda e às vestes, tornando certos figurinos fundamentais para a história e uma lição sobre a evolução do personagem através da roupa. Não há como falar de moda e figurino em Hitchcock, sem citar suas loiras gélidas. O diretor amava as loiras hollywoodianas e acreditava que elas estavam ligadas à tradição do cinema, era obcecado por essas loiras, que deveriam estar incrivelmente bem vestidas. “Pessoalmente, sou contra loiras que usam seu sexo pendurado no pescoço como uma grande jóia. Sempre pensei que era possível tentar descobrir no curso da sua história, se uma mulher é sex ou não” dizia o mestre. Suas personagens loiras eram levemente distantes, desejáveis e discretas, tudo ao mesmo tempo - nada de femme fatale explicitamente. Cito algumas de suas icônicas loiras: Joan Fontaine, Janet Leigh, Eva Marie Saint, Tippi Hedren, Kim Novak, Doris day e suas amadas Ingrid Bergman e Grace Kelly. Destaco alguns filmes, cujos figurinos merecem atenção especial: Em “Rebecca (1940)”, Joan Fontaine é uma personagem sem nome, só conhecida como Sra. De Winter. Seus trajes chamam a atenção pela extrema simplicidade, ainda mais quando contrastam com o luxo da mansão (Manderley) e com os pertences da falecida Rebecca. A camisola transparente e extremamente provocante de Rebecca, que a diabólica governanta faz questão de mostrar, dá indícios curiosos sobre sua personalidade. Outra peça fundamental do figurino é o vestido que a governanta induz a Sra. De Winter a criar como fantasia. Na hora da festa ao chegar com este traje, causa espanto em todos por ser igual ao usado pela falecida. Além disso, é marcante no início do filme quando o Sr. De Winter, personagem de Laurence Olivier, faz com que sua noiva prometa: “Por favor, prometa-me nunca vestir cetim preto ou pérolas, ou ter trinta e seis anos .”
Ainda nos anos 40, temos “A Sombra de uma dúvida (1943)”, o filme preferido do diretor que traz a mocinha Charlie (Teresa Wright) com a moda específica dos anos de guerra: ombros largos, saia justa e de comprimento diminuto. No mesmo filme temos o tio Charlie, homônimo da sobrinha, e por que não seudoppelgänger? Tio Charlie veste-se sempre impecavelmente como um implacável sedutor de viúvas. Em “Spellbound (1945)” eu destacaria a colaboração de Salvador Dalí na antológica cena do sonho, o artista teve uma estreita relação com a moda. As mais belas e significativas cenas de surrealismo ligado às vestes foram cortadas deste sonho, onde surgia Ingrid Bergman vestida como estátua grega com uma flecha no pescoço em contraponto com a escultura “A Vênus Restaurada” do fotógrafo e artista Man Ray. “Sob o Signo de Capricórnio (1949)”, também com Bergman, foi considerado um dos melhores “Hitchcocks” pelos críticos da Cahiers Du Cinema, e aqui é lembrado pela sua excelente caracterização de época, sobretudo dos cavalheiros e da bela e alcoólatra personagem. Nos anos 50 temos a moda do New Look: amplas saias rodadas e cintura de vespa. Este estilo se originou do polêmico lançamento de Christian Dior durante o Pós-Guerra, e na década de 50 já estava completamente inserido nos guarda-roupas e imaginários das americanas. No filme “Pavor nos Bastidores (1950)”, a diva Marlene Dietrich exigiu Dior para seu figurino e Cole Porter como compositor. Ela chegou a ameaçar Hitchcock: "sem Dior, sem Dietrich!" Uma das cenas mais marcantes do filme é quando ela surge com o vestido branco manchado de sangue e mais tarde um menino lhe mostra uma boneca com o mesmo vestido e a mancha. A culpa e o tormento são então materializados em um Dior maculado. "Pacto Sinistro (1951)" usa a indumentária para descrever um psicopata bastante excêntrico: Bruno. O personagem usa gravatas absurdas e um prendedor com seu nome bastante inusitado. O filme já começa com close em seu sapato bicolor, ele veste terno listrado impecável e gravata com estampa de lagosta, totalmente surrealista se lembrarmos as relações de Dalí e da estilista Schiaparelli com este crustáceo.
“Disque M para Matar (1954)” foi o primeiro filme de Grace Kelly com Hitchcock. Para o diretor, foi uma grande perda ela se tornar princesa, pois a desejava para diversos outros filmes. Grace cogitou viver “Marnie (1964)” no cinema, mas a corte de Mônaco a proibiu quando soube que seria uma ladra. Dizem que todas as outras loiras escolhidas foram tentativas de Hitchcock para recuperar a imagem e o sentimento que nutria de forma tão reverente em relação a ela, pois considerava Grace uma dessas mulheres que “na sala são senhoras e na cama prostitutas.” Em outro momento explica: “A sutileza do seu sexo atrai-me. Grace transmitia muito mais sexo do que a habitual ‘bomba sexual’. Com Grace, era preciso procurá-lo”.
A evolução da indumentária mais sóbria, conforme a situação da personagem vai se agravando, é bastante evidente em “Disque M para Matar”. No início não há nenhuma sutileza: twin-set branco no café da manhã com o marido e vestido vermelho vivíssimo com o amante. O twin-set é signo de uma típica e devotada esposa da década de 50, já o vestido de festa luxuoso, vermelho e com mangas de renda, remete à traição, sensualidade e à própria lingerie vermelha. Durante o crime, Grace veste uma lânguida camisola, sugerida pela própria atriz nos faz lembrar o que afirmou Truffaut: “Hitchcock filmava cenas de amor como se fossem cenas de crime, e cenas de crime como se fossem cenas de amor.” Após o crime Grace Kelly veste um tailleur cinza escuro e muito sóbrio, “fechando” a personagem e a esmorecendo até o fim.
Em “Janela Indiscreta (1954)” Grace Kelly representa uma socialite muito bem vestida e na última moda. O estilo New Look se faz bastante presente e marcante em seus belos trajes assinados pela figurinista Edith Head. Suas roupas mostram todas as tendências de moda da época: vestidos de festa, jeans casual e a clássica alfaiataria em tailleur verde. A figurinista Edith Head trabalhou em 11 filmes de Hitchcock, ele confiava muito na moça quando se tratava de esconder os abismos secretos de suas gélidas loiras. “Ladrão de Casaca (1955)” era o filme predileto de Edith entre os do diretor, ela referia-se a este como o sonho de todo o estilista, já que as criações eram luxuosíssimas e bastante significativas, tanto as de Grace Kelly como a roupa negra do ladrão: “o gato”. A década de 50 foi marcada por grande ostentação e luxo nas vestes, nas festas e no cinema. Nesta época houve um surto de bailes de máscaras esplendorosos, repleto de reis, rainhas, artistas e estilistas renomados. Entre estes bailes, nenhum foi mais fotografado que o do colecionador de arte, multi-milionário-excêntrico Charles de Beisteguis, em seu palácio de Veneza em 1951, tido como a festa do século. Inspirado neste acontecimento, Hitchcock criou o baile final do filme “Ladrão de Casaca”. Neste filme, as cores das vestes de Grace ficam mais intensas ao desenrolar da trama. Destaque para o marcante traje de banho preto e branco e para o vestido emchiffon branco tomara-que-caia, logo todos os magazines da América o copiariam. Nas cenas finais e ápice do filme, Grace usa um suntuoso e inesperado vestido de lamê dourado - é o clímax do filme - nada pode superar aquele vestido.
O filme “Um corpo que cai (1958)”, com Kim Novak, é praticamente uma história de amor gótica entre Scottie (James Stewart) e a Morte. Tudo parece sobrenatural e tanto o figurino como a ambientação foram constituídos neste sentido. Apesar de toda a aura onírica em torno de Madeleine, ela veste roupas elegantíssimas. Hitchcock queria dar às roupas da personagem e a ela própria uma aparência “assustadora”. Então, Edith Head selecionou um tailleur cinza, dizendo que poderia ser estranho ou inesperado para uma mulher loira se vestir toda em cinza, isso poderia fazer sumir o brilho de uma mulher tão atraente. De fato, todos os elementos a tornam misteriosa e etérea: as vestes, o cabelo loiro platinado e a maquiagem acinzentada, que a deixa pálida e faz parecer menos real. Segundo Kim, ela jamais havia trabalhado com um diretor que exigisse tanto de sapatos e figurino. Quando viu seu tailleur cinza, disse: “Oh meu Deus! Parece que será muito difícil agir dentro dele. É muito confinante(...) (..)Quando provei pela 1ª vez foi mesmo muito pior, era tão restrito”. Depois ela argumentou que não usaria sapatos pretos, e que eles a faziam se sentir puxada para baixo, desconectada e insegura. Hitch achou ótimo: “Madeleine usará, Judy não!” Mais tarde Kim Novak confessou: “Tudo funcionou perfeitamente bem, o tailleur e os sapatos foram uma benção. Eu era constantemente lembrada de que eu não estava sendo eu mesmo, assim como Judy.” Para finalizar, não poderia deixar de citar “Psicose (1960)”, eu quase deixei passar quando preparava minha apresentação sobre Figurinos em Hitchcock, durante o curso de Carlos Primati em Porto Alegre. Mas, graças ao Napoleão me lembrar que a mente de Norman Bates simula uma “mudança substancial de identidade” no personagem, pensei o quão profunda era a questão de Norman se vestir e “incorporar” sua mãe. Neste momento, o assassino assume uma outra identidade, independente de questões patológicas, ele “torna-se sua mãe” e as roupas e perucas são tão fundamentais, que levam mesmo os espectadores a crerem que a “velha” é a assassina.
*Ana Carolina Acom é filósofa graduada pela UFRGS e especialista em Moda, Criatividade e Inovação pelo SENAC – RS. Atua como pesquisadora e consultora de moda e semiótica das vestimentas, através de palestras, produções e desenvolvimento de figurino. Possui artigos publicados em todo país, e é responsável pela consulta de estilo da marca fragmento. Além disso, integra o projeto “As Carolinas”, com atuações em diferentes setores da moda. Fotos: Reprodução |
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